Cineasta Jorge Furtado contesta a origem das polêmicas sobre “inadequação” de obras literárias para estudantes
Chegou ao Sul a polêmica dos livros ditos “pornográficos” adquiridos pelo Programa Nacional de Bibliotecas nas Escolas (PNBE), do governo federal. Boa matéria de Marcelo Gonzatto em Zero Hora (sexta-feira, 19/6/09, pág. 50) informa que “esta semana, quando chegou uma nova remessa ao Estado, uma escola de Alvorada relatou à SEC que considerava as obras de (Will) Eisner impróprias”. A Secretaria Estadual da Educação, segundo a matéria de ZH, mandou “remover das estantes três livros do autor norte-americano Will Eisner por serem ‘inadequados’ para adolescentes”.
É uma pena. As obras em questão são três novelas gráficas, em quadrinhos, escritas e desenhadas por Will Eisner. Não li O Jogador, mas afirmo que Um Contrato com Deus (Editora Brasiliense, 1988) e O Nome do Jogo (Editora Devir, 2003) são obras-primas de um grande artista, e seria um grande serviço da escola pública gaúcha disponibilizá-las aos seus alunos.
A matéria de Zero Hora tem como título uma pergunta: “Pedofilia, estupro e adultério são temas para estudante?”. Minha resposta é sim, é claro que são. É óbvio que cada livro deve ser adequado a idade do aluno, ninguém pensaria em sugerir a leitura de Sade ou Pierre Louys a crianças, mas afirmo que os livros de Will Eisner são totalmente adequados a adolescentes. Mais que adequados, necessários. A ideia de que um assunto deva ser sonegado aos estudantes contraria qualquer noção pedagógica, além do bom senso. “Saber sempre é bom”. Familiarizados com temas como a pedofilia, o estupro ou o incesto, jovens brasileiros talvez possam se sentir mais aptos a evitá-los ou mais encorajados a denunciá-los. É para isso, para aprender sobre nós mesmos, que existe a literatura e a arte, divulgá-las é função da escola.
A polêmica do livros “pornográficos” anda rebaixada, como quase todo o debate público, pelo astigmatismo ideológico que “politiza”, na pior acepção da palavra, qualquer conversa. Em São Paulo foram os petistas que caíram de pau no governo Serra por distribuir livros “pornográficos”. Will Eisner, Manoel de Barros e outros depravados foram citados por gente furiosa, que pedia que o governo estadual paulista gastasse dinheiro com “literatura de verdade”. Aqui a crítica parece que mira o governo federal e o MEC, que comprou os livros. Quase todos os críticos falam das obras “em tese”, informam “não ter lido” mas... José Serra, sem ler, afirmou que as obras eram “de baixa qualidade”, e o governo gaúcho “não descarta recorrer a uma medida judicial para impedir a distribuição” dos livros.
Sugiro aos interessados que, para começar, leiam os livros. Garanto que são de altíssima qualidade e, ao contrário do que afirma a secretária Mariza Abreu, a obra de Will Eisner não “estimula a erotização, o comportamento agressivo” e muito menos “uma percepção inadequada das relações afetivo-sexuais”, ao contrário. A obra de Eisner, assim como a Bíblia, Shakespeare, Machado de Assis, Cervantes, ou a obra de qualquer grande autor, utiliza os temas fundamentais que animam o espírito humano, incluindo aí crimes e pecados. Tratar temas como agressão, adultério ou pedofilia não significa “incentivar” a agressão, o adultério, ou a pedofilia. Significa conhecê-los. Não é esta a função da escola?
* Cineasta, dirigiu, entre outros, “O Homem que Copiava” e “Saneamento Básico, o Filme”